conto de areia.

(leia ouvindo essa!)  

  A minha avó foi uma feiticeira das brabas. 
  O mais interessante e engraçado é que ela certamente nem sabia, e se me ouvisse dizer isso, provavelmente mandaria eu "virar essa boca pra lá" - outra mandinga das boas.

    Católica ferrenha, fez com que quase todos os netos fossem batizados lá nos primeiros meses de vida. Devota de Santa Rita de Cássia, de Santa Terezinha e tantas outras mais, foi também Ministra da Eucaristia por muitos anos na paróquia. Minha avó não gostava de nada que remetesse ao sobrenatural, a não ser suas preces e os milagres que pedia em sua fé. 

    Mal sabia ela. 

    Mal sabia ela, quando sob olhares preconceituosos de uma cidade inteira, sustentou a família com sua costura. Mal sabia ela, quando pavimentou o caminho em que meu avô prosperou, também às custas de seu artesanato. Mal sabia ela, quando se deslumbrou com as maravilhas do mundo material e por diversas vezes redecorou a casa nova, numa cidade também nova. 

    Mal sabia ela, quando cozinhava ao som da própria voz bem afinada, que magia é tudo aquilo que se faz com alguma intenção. E toda vez que ela preparava alguma comida, preenchia o sabor com seu próprio encanto. Todos os que comeram algo feito por ela sabem disso. Sua presença, apesar de pequena em estatura, dominava toda a cozinha de casa e, sozinha, ela enfeitiçava a todos que se alimentassem do que cozinhava. Caldos, pernis, maioneses, fricassês, e até mesmo as receitas que abandonou na pequena cidade do interior, muito antes do meu retorno a esse mundo.

    Os natais eram recheados de pratos que agradassem a todos. A ceia era aguardada ansiosamente e, na maioria das vezes, até a oração que fazia questão antes que fosse dada a largada para a comilança parecia um obstáculo. Não apenas nessas ocasiões, mas também em outras, me assistia comer, já que, segundo ela, eu comia com gosto. Hoje sei que aquela comida me enfeitiçava, me nutria com uma magia que eu sequer sabia existir - e provavelmente, ela também não. A alquimia dos alimentos lhe era natural, e não havia o que produzisse que fosse ruim, mesmo não sendo do gosto de uns e outros.

    Sua passagem para a dimensão dos espíritos foi um marco doloroso para todos que a conheciam e apreciavam. Em casa, cada um de nós viveu o luto à sua maneira. Acho que, toda vez que me alimento ou que aprendo uma nova receita, estou também em busca de curar o meu. Minha avó, bruxa braba que era, levou consigo o gosto de tudo o que já fez numa cozinha, sem deixar o segredo para trás. 

    Minha avó viveu por setenta e um anos, dos quais aproveitei vinte e um. Para muitos efeitos, fui testemunha e produto da magia mais pura que seu amor pôde oferecer a esse mundo. Biologicamente, um dia, fui parte dela. Espiritualmente também. Talvez seja por isso que eu ainda tenha tanto a resolver por causa de sua ausência, que, sabemos, é puramente física.

    Ontem, na hora que começamos a cozinhar a ceia desse natal, com uma réplica de uma receita que ela tão carinhosamente fazia para mim, o modo aleatório do aplicativo de música trouxe uma das canções que tanto amava cantar em seus momentos de magia. Foi minha tia quem disse, "olha a dona Dalva chegando aí!". Embora na hora eu tenha apenas concordado, minha mente se apegou àquilo e o arrepio veio logo. Ela se fez presente em vários outros momentos desse Natal, e embora seus chinelos apressados não tenham sido o ruído da tarde corrida que precedia a ceia, o seu carinho por nós permeou os dois dias, e mesmo que de uma maneira diferente, sentimos seu amor rescender por aqui.

    Natal, para mim, passou a ter um teor muito diferente depois da infância. É a ansiedade por uma comida especial, de um sabor ímpar e etéreo, que reúne nossa família com risos e partilha. O negócio é que, aqui em casa, quase todo dia é Natal, e a culpa é toda e unicamente da feiticeira braba que, ao partir, deu seu jeito de nos fazer unidos para que ninguém se perdesse no caminho que ela traçou. Toda noite tem riso, toda semana tem receitas pensadas e produzidas com alegria, todo mês tem partilha, e para além disso, é sempre algo muito genuíno. 

     Por aqui, me caçoam pela mania de controle e pelo autoritarismo que, muitas vezes, até sai do limiar aceitável. Não justifica, mas a explicação também está na grande magia que ela incumbiu a mim durante aqueles anos, que só floresceu quando sua presença tornou-se um espectro, como uma resposta desesperada e abstinente de encantamento. Encaro essas palavras que saem do meu âmago hoje, sete anos e meio depois, e percebo que na maioria das vezes, estou também tentando refletir uma centelha da grandeza que ela teve e foi.

        Minha avó foi uma feiticeira das brabas. 
      Era na comida, no canto e no colo que ela nos encantava, como a grande Iemanjá que foi, mesmo sem saber.

    Segue enfeitiçando a gente daí, vó. Segue, que daqui eu faço coro do seu canto! A bênção?! 


O vento que rola nas palmas arrasta o veleiro 
E leva pro meio das águas de Iemanjá 
E o mestre valente vagueia, olhando pra areia sem poder chegar 
Adeus, amor

Comentários

  1. Linda mensagem ou reflexão, sei lá, mas no meu pode ser, o contexto se me parecia evidenciar grandes pelejas do contraditório, dadas as nuances irrefletidas do meu eu de de dimensões inalienáveis. Deixo isso pra lá, palavras são apenas caracteres desprovidos, às vezes de contexto. Nada é igual, ela se foi, mas não foi. será?

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  2. As nuances que a vida traz, os feitiços são as nuances... os detalhes. Pra virar feitiço tem que rezar, comondiz Liniker. A presença de alguém sempre será eterna enquanto se tem memórias sobre ela. Que ela siga com você e sua família 🙏🏻

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  3. Linda mensagem!! Uma homenagem ímpar, e com um carinho único e genuíno!!! Guarde sempre esse amor pela sua avó!!❤️❤️❤️🌺🌺

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  4. Tudo isso é você, amada irmã
    Escrito e sentido por uma
    pessoinha ( carinhoso) que
    ama você de um jeito
    único, sincero e lindo
    Que também você ama
    sem limites.
    Essa é VOCÊ...
    Não consigo ir adiante
    Muita luz ,amada
    Irmã!
    Parabéns Laís !

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  5. Belo texto, de uma delicadeza e amorosidade que só as feiticeiras tem. A arte de enfeitiçar a vida vem de nossas ancestrais e no fundo todas nós carregamos! Sua avó deve ter sido uma delícia de pessoa! 😘

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  6. A brisa nostálgica do Natal e sua função de mostrar que, assim como o nascimento de Cristo, nossas vidas tem recomeços, caminhos recém criados a serem seguidos e perseguidos, sonhos a alcançar e uma infinidade de metas a alcançar. Lembrar de tempos nos permite agradecer pelo que passamos e pudemos vivenciar de maneira tão simples como você e sua avó

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  7. Aí está a mensagem encantadora, verdadeira e amorosa da neta que você tanto ama, destrinchou, em todos os lindos detalhes, tal qual você é, irmã!
    Realmente, essa avó, esposa, mãe, filha, cunhada, etc..., é maravilhosa, é puro amor e eu fico orgulhosa e agradecida a Deus, por ter convivido com ela...a estrela Dalva das nossas vidas, que agora encorporou devidamente seu real lugar, na estrela, e está presente e brilhante no firmamento, nos iluminando a todos, mas aproveitando que durante o dia, onde o sol, com sua luz, lhe dá uma pequena e abençoada trégua, para descer e estar um pouquinho com cada um, amando a todos, talvez, agora, até mais, porque encontrou seu lugar verdadeiro...
    Saudades irmã!
    Muita luz, como a das estrelas!
    Eternamente em nós!

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