nunca é tarde demais pra voltar
"Sorria, você está na Bahia!"
Acho que aquela história de levar tanto tempo para se acostumar com algo é baboseira. Ao mesmo tempo, acho que não é. Aqui em São Salvador da Bahia, bem como dizia Jorge Amado, as dicotomias são muitas e os paradoxos são forçados a conviver. Essa é mais uma delas.
É fácil demais se habituar à baianidade das pessoas, lugares e sons. Debaixo d'água, o som distante das turbinas dos aviões que sobrevoam a orla faz soar o canto das sereias, que mistificam o mar que cerceia a cidade natal do Brasil. O silêncio não tem vez, dá espaço às mais variadas línguas que passeiam curiosas pelos calçamentos. Quando não, o silêncio cede espaço aos sons e vozes dos artistas que a Bahia fez nascer, relembrados em aparelhos de som nos estabelecimentos, ou ainda, em vozes e instrumentos dos artistas de rua.
O axé prolifera e recende, encanta o mais forasteiro dos visitantes e ilumina os incansáveis trabalhadores. De uma força que só poderia ter nascido de pessoas negras, São Salvador da Bahia ganha, sem muito esforço, o coração daqueles que se deixam abrir para ela.
Tudo é feito para te abraçar, e talvez, esse seja o maior presente que São Salvador poderia te dar. Árvores enormes e frondosas oferecem abrigo para o sol impiedoso e escaldante, a água do mar de Iemanjá refresca sem congelar. A comida é preparada com tanto esmero, que quando é colocada à sua frente parece uma obra de arte feita especialmente para si. Talvez seja a força ancestral que nos recebe, fazendo-nos sentir um conforto que se assemelha ao abrigo incólume de um ventre materno.
O sobrenatural desfila no muro tênue, na malandragem de Exu, latente como o som das percussões e batuques que balançam o Pelô. Seu aroma é sentido no defumador na Rosário dos Pretos, que abala o mais arrogante dos céticos ao misturar Cristo com a sonoridade de Oxalá. Mais acima, sereno e já parte da alma do Terreiro de Jesus, Mestre Calá, seu Clarindo Silva, lê seus jornais velejando na paz da própria mente, como se não estivesse sentindo as paredes e o chão vibrar com o cortejo. Mestre Calá preserva hábitos e memórias do povo da cidade da Bahia, acolhe quem chega à Cantina da Lua com palavras sábias e nunca clichês, numa calmaria digna dos Pretos Velhos, como se não fosse o grande responsável pela preservação daquilo que milhões de pessoas viajam para conhecer. Como se não fosse sua vida o grande vórtice que ecoa nos gestos das crianças que sobem os Largos, imitando as mãos dos músicos habilidosos.
Mas é impossível se acostumar com a beleza de São Salvador da Bahia.
O azul, como diz uma das grandes artistas vindas daqui, que tanto amo e me inspira, realmente só se tem aqui. É obsceno, do tipo que parece gritar a definição da cor diante dos seus olhos. As folhas das árvores contrastam fazendo jus, pois seu verde é digno do que chamam por aí de esperança. As praias, paradisíacas e cinematográficas, te convidam a saudar aquela que protege pescadores, marinheiros, locais e nômades, sem olhar o dinheiro ou a cor - a descriminação por esses viéses é unicamente humana. Iemanjá, deusa e mãe que é, acolhe a todos, bem como a própria cidade.
Em tudo aqui há Deus, Obatalá, Oxalá, Alá. A proximidade com tanta luz é algo que realmente não é e nem pode ser normalizada por nós, que vivemos tão longe de tudo isso. É vital que mantenhamos essa relação de paraíso na terra, e saibamos respeitar o chão sagrado em que pisamos. Afinal, por mais bela e poderosa que seja essa cidade, há de se reconhecer os horrores aqui vivenciados - horrores dos quais saberemos apenas uma centelha, já que sua maioria foi apagada.
Honremos aqueles que vieram antes, que construíram esse nosso refúgio. Celebremos aqueles que fazem das nossas visitas tão acolhedoras e agradáveis. São Salvador da Bahia é um presente dos orixás e deuses para a humanidade. Um presente que sequer merecemos, mas ainda assim, podemos ainda aproveitar.
Se um dia fui feliz, foi Oxum, a dona dessa cidade (e de mim, também!), quem quis. E verdade seja dita, nessa cidade me é difícil demais não ser feliz!
Axé, São Salvador da Bahia! Ainda nem fui embora, mas já, já, eu tô de volta.
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